sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O Fantasma

Apenas mais um dia de trabalho no escritório quando Ronaldo ouviu mais um grito de seu chefe percorrer o corredor:
— Ronaldo! Aqui agora!
— Sim chefe! — respondeu resmungando consigo mesmo e foi de cabeça baixa para a sala de onde o grito saiu.
— Mais uma vez você está com a papelada atrasada; mais uma vez você não teve nenhuma idéia para o novo projeto e mais uma vez eu tenho que chamar sua atenção.
— Desculpe chefe, estou um pouco desanimado.
— Desanimado de novo? O que você quer? Que eu aumente seu salário mais uma vez?! Se eu ameaçar te demitir... Será que isso te anima? Preciso de resultados!
— Desculpe chefe... — falou voltando para sua mesa ainda sem levantar a cabeça.
Todos o olhavam e riam daquele que já havia sido o melhor funcionário da empresa, mas que agora não passava de uma grande piada.
Em desses dias frustrantes e deprimentes enquanto voltava pra casa foi parado por uma cigana de vestido longo amarelo, muitos dentes de ouro e mais anéis do que dedos nas mãos.
— Olá, querido. Posso ajudar?
— Se você tiver alguma coisa que possa me ajudar a... sumir... desaparecer.. quando for preciso eu agradeço.
— Hum... muito complicado isso. Mas conheço alguém que pode ajudar: Madame Cristal. Aqui está o endereço querido. — disse a mulher entregando um cartão preto com bola de cristal, anéis, poções e muitas outras coisas obscuras desenhadas.
— Mas onde está o endereço? — perguntou tarde demais, a cigana já havia desaparecido. Jogou o cartão no bolso da calça e continuou seu percurso até se aproximar de um beco escuro, o qual nunca havia reparado. O cartão pulou de seu bolso e saiu flutuando até uma velha barraca. “Madame Cristal”, dizia a placa na porta.
Entrou e se deparou com uma figura bizarra e assustadora. Uma mulher que parecia ter duzentos anos com um turbante preto na cabeça e batom vermelho sangue nos enrugados lábios olhava por uma bola de cristal.
— Sabia que viria jovenzinho, sente-se. — falou erguendo a mão e fazendo uma cadeira aparecer do outro lado da pequena mesa redonda. — Você quer poder sumir não? Tem certeza?
— Toda certeza. Quero poder desaparecer quando quiser e reaparecer de volta conforme a minha vontade.
— Ah... veio ao lugar certo. Eu tenho isso. — disse levantando-se para pegar um pequeno frasco branco de liquido transparente. — É uma poção de invisibilidade.
— Eu quero. Diga, quanto custa?
— Apenas quinhentos mil reais.
— O que? Não tenho esse dinheiro!
— É um preço justo, e muito barato. A poção do amor está um milhão de reais, caso tenha interesse.
Ronaldo saiu da barraca pensando em como seria poder ficar invisível nas horas em que virasse piada, que seu chefe gritasse seu nome, sua filha dissesse novamente que era o culpado pela doença mental da esposa, quando esta tivesse mais um de seus surtos de psicose e começasse a lhe tacar vasos ou em qualquer outra situação desconfortável.
O homem vendeu o carro, a moto, pegou todas as suas economias no banco e no sufoco conseguiu cem mil reais. Como única solução encontrada procurou nada menos do que oito agiotas e pediu cinquenta mil a cada um dando o apartamento como garantia, pois era o único bem que lhe restava. Passaram-se duas semanas e Ronaldo já tinha seus quinhentos mil reais. Pegou o dinheiro e foi à procura de Madame Cristal.
Lá estava o vidrinho mágico, em suas mãos. Tudo o que teria que fazer era abrir e tomar, e assim fez. Saiu pela rua totalmente imperceptível, sentia-se ótimo sem a rotineira sensação de que estava sendo avaliado negativamente por todos.
Assim que chegou em casa avistou a esposa, preferiu não comunicar a chegada e foi logo deitar-se. Caiu cedo em um profundo sono, coisa que há muito tempo não fazia, e começou a sonhar com dinheiro, sucesso, fama, e outras coisas que todo ser humano sonha de vez em quando.
Quase de madrugada despertou com sua mulher chorosa sentando em sua barriga.
— Ah! Meu deus! Uma assombração, fantasma, coisa ruim na minha cama! Sai daqui satanás!
— Calma Sueli sou eu... espere, vou aparecer. — disse fechando os olhos e ganhando cores de pouco em pouco. — Não é incrível? Agora tenho o poder de ficar invisível! É inacreditável, não?
A mulher nada respondeu, apenas saiu caminhando do quarto. Apareceu novamente um minuto depois com uma vassoura empunhada raivosamente.
— Saia daqui! Você não é o Ronaldo. Eu não o vi chegando. Estou há duas horas em frente à porta aguardando. Agora saia assombração! — gritou espancando o homem a vassouradas. Ele tratou de ficar invisível o mais rápido possível e correu trancando-se no banheiro do quarto.
Sueli acalmou os nervos e muito tempo depois conseguiu dormir. Quanto a Ronaldo? Ficou lá mesmo... tentando adormecer sentado na tampa do vaso depois de seu primeiro Grande Dia.
Na manha seguinte não foi para o trabalho; preferiu ficar vagando pela cidade enquanto decidia o que fazer da nova vida. Definitivamente não queria continuar naquele emprego esgotante. Queria mandar e desmandar, chegar a hora que quisesse, sair quando bem entendesse... Agora? Ronaldo queria ser o manda-chuva do pedaço e nada menos do que isso.
Ele andou de empresa em empresa, loja em loja a procura de algo que parecesse fácil e sem-necessidade-de-esforço, mas tudo que encontrou foram funcionários ralando com a esperança de que um dia alcançariam o sem-necessidade-de-esforço. Vários dias e várias andanças depois, decidiu voltar e se desculpar com a chefia pelas faltas. Não tinha dúvida que o Sr. Palmeira levaria em conta o bom funcionário que já havia sido e o deixaria voltar.
— O que Ronaldo? Você pretende voltar? Achei que estava justamente ‘pedindo’ para ser demitido! Você é um funcionário que só reclama, não produz nada sem incentivo salarial, acha que é superior aos outros e não precisa se esforçar para crescer... Dois anos atrás quando você chegou era outra pessoa! Corria atrás das coisas, ficava até o escritório fechar, se preocupava com as metas da empresa. Você foi crescendo. Estava a ponto de quase ser promovido quando começou a desleixar e se achar superior aos outros de mesmo cargo. Olha aqui, não quero que você volte... — nesse momento parou de falar e ficou observando Ronaldo lentamente ficar invisível e sair pela porta. Segundos depois as mesas e cadeiras do escritório estavam jogadas pelo chão, papeis voavam como redemoinhos pelos corredores e pessoas gritavam correndo desesperadas.
— Saia logo daqui Ronaldo! Antes que eu chame a polícia! Saia! — gritou o Sr. Palmeira quase explodindo a cara vermelha de raiva, pegou o extintor de incêndio e depressa correu para dar cor ao fantasma.
Ronaldo já não estava mais invisível e todos, sem exceção começaram a atirar objetos no homem. Arremessavam cadeira, lixeira e qualquer outra coisa que tivessem às mãos. Por pouco não foi atingido pela única faca do escritório, que ele mesmo usou várias vezes quando queria passar geléia nas torradas que tanto adorava.
Saiu de pressa do prédio todo ferido e mancando, com todas as pessoas olhando para sua silhueta coberta de espuma. Um homem o reconheceu, pegou em seu pescoço e o jogou em uma ruela.
— Meu chefe está na sua cola. Se não pagar os cinquenta mil daqui a duas semanas, já sabe... Nós não perdoamos.
Foi nesse momento que se lembrou da dívida e caiu em choro, não é possível descrever o quanto de arrependeu do que fez e desejou mais que tudo poder voltar atrás. Então, correu para a casa e pediu para sua mulher fugir. Explicou toda a encrenca a qual se metera e ficou invisível para provar o que falava, mas a mulher achou que estava mais louca que nunca... horas depois se jogou pela janela do apartamento e morreu.
O enterro foi no dia seguinte, mas Ronaldo decidiu não ir e ficou deitado em sua cama, desiludido, invisível e em letargia eterna. Levantava, comia, dormia e nada mais que isso. Acordou somente duas semanas depois com quase vinte homens arrombando a porta de sua casa. Era o dia de pagar a dívida aos oito agiotas, o problema é que o apartamento foi à garantia dada a todos eles pelo empréstimo que havia feito sem antes pensar em como iria pagar.
Pulou da cama e ficou escondido em baixo do sofá. Os homens começaram a revirar a casa praguejando tudo quanto é nome.
— Esse tal de Ronaldo enganou todos nós, não vamos entrar em guerra por causa dele. Vamos queimar esse apartamento e colocar todo o nosso pessoal na pista desse sujeito. Se ele aparecer, agente faz sumir. Duvido que consiga fugir de todos os nossos capangas.
E assim espalharam gasolina pela casa e acenderam um fósforo. Logo tudo estava queimando: as cortinas, os móveis, os eletrodomésticos, as recordações da família... tudo estava indo embora.
Ronaldo correu para fora já quase sem conseguir respirar e ficou observando. Os bombeiros já haviam sido chamados e tentavam conter as grandes labaredas que saiam pelas janelas. Pela tarde o fogo já estava controlado e havia inúmeros técnicos e policiais ao redor do prédio quando Ronaldo resolveu procurar Madame Cristal para remediar a situação.
— Não devolvo o dinheiro, e não o obriguei a nada... Meu jovem, todo ser humano tem milhões de oportunidades e caminhos a seguir, mas cabe a cada um fazer a sua escolha... Isso foi o que você escolheu, não eu.
Depois disso Ronaldo nunca mais se tornou visível, e viveu o resto de seus dias vagando pelo mundo coberto de medo, arrependimento e vergonha.

Um comentário:

Dídimo Gusmão disse...

Como é bom, poder ler bons textos.
Parabéns!
Já sou o seu mais novo seguidor.

http://oliveirabicudo.blogspot.com.br/2012/04/cronica-conversa-entre-pai-e-filho.html